quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Se pode ser tão certo, porque então ser tão incerto...

quando teu  olho  se  afasta  assim,  não  sei  para  onde,  talvez  para  esse  mesmo 
lugar  onde  te  encontravas  ontem,  à  beira  do  mar  aberto,  onde  não penetro, como não te penetro agora, mas é  quando a pedra ou faca no fundo  do  meu  olho  afasta  o  teu  é  que  te  olho  detalhado,  e  nunca saberás  quanto  e  como  já  conheço  cada  milímetro  da  tua  pele
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 tento fugir  para  longe  e  a  cada  noite,  como  uma  criança  temendo  pecados, 
punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo  nunca  mais  ouvir,  nunca  mais  ter  a  ti  tão  mentirosamente próximo
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mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo  jogo  e  embora  supondo  conhecer  as  regras,  me  deixo  tomar inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não  decifro,  a  aceitá-los  como  um  cão  faminto  aceita  um  osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos  vazios,  torno  sempre  a  voltar,  talvez  penalizado  do  teu  olho  que 
não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu
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 e  novamente  me  tomas  e  me  arrancas  de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra  tento  desesperado  encontrar  um  sentido,  um  código,  uma senha  qualquer  que  me  permita  esperar  por  um  atalho  onde  não desvies  tão  súbito  os  olhos
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melados de nossa própria  cínica  doçura  acovardada,  contaminados  por  nossa  falsa pureza,  encharcados  de  palavras  e  literatura,  e  depois  nos  jogasse 
completamente  nus,  sem  nenhuma  história,  sem  nenhuma  palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas  sobre  mim  com  teus  olhos  sempre  fugitivos  e  abres  a  boca para  libertar  novas  histórias  e  outra  vez  me  completo  assim,  sem urgências,  e  me  concentro  inteiro  nas  coisas  que  me  contas,  e  assim calado,  e  assim  submisso,  te  mastigo  dentro  de  mim  enquanto  me apunhalas  com  lenta  delicadeza  deixando  claro  em  cada  promessa  que 
jamais  será  cumprida,  que  nada  devo  esperar  além  dessa  máscara colorida,  que  me  queres  assim  porque  é  assim  que  és  e  unicamente assim  é  que  me  queres  e  me  utilizas  todos  os  dias,  e  nos  usamos honestamente  assim
...
 não sabes desse meu mar porque  nada  digo,  e  temo  que  seja  outra  vez  aquela  coisa  piedosa, faminta,  as  pequenas-esperanças,mas  quando  desvio  meu  olho  do  teu, dentro  de  mim  guardo  sempre  teu  rosto  e  sei  que  por  escolha  ou fatalidade,  não  importa,  estamos  tão  enredados  que  seria  impossível recuar  para  não  ir  até  o  fim  e  o  fundo  disso  que  nunca  vivi  antes  e talvez  tenha  inventado  apenas  para  me  distrair  nesses  dias  onde aparentemente  nada  acontece  e  tenha  inventado  quem  sabe  em  ti  um brinquedo  semelhante  ao  meu  para  que  não  passem  tão  desertas  as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis  esperas  ardentes  e  loucas  invenções noturnas,  e  lentamente falas,  e  lentamente  calo,  e  lentamente  aceito,  e  lentamente  quebro,  e lentamente  falho...
(Os Dragões Não Conhecem o Paraíso - A Beira do Mar Aberto- Caio Fernando Abreu)

Rafaela Souza
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